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quarta-feira, 6 novembro 2024

Encantou-se Gabriel Andrade, defensor do queijo de leite cru



Patrono do queijo artesanal brasileiro, ele foi o primeiro a denunciar a injustiça do queijo mineiro não poder atravessar as fronteiras estaduais…

Foto: Gabriel e João Leite, produtor de queijo Canastra FOTO: Dave Senigo/SerTãoBras

“Lula, queremos que você liberte o queijo de leite cru,” pediu Gabriel Andrade, falecido ontem aos 96 anos, ao então presidente em 2008. A filha de Gabriel, Li An, pediu mais: “queremos liberdade para o queijo e para a maconha”. Lula respondeu: “o queijo eu legalizo, a maconha eu deixo para Dilma”.

No seu aniversário de oitenta anos, em 2006, Gabriel pensou no que ainda tinha para fazer na vida. Engenheiro conhecido como um dos sócios que fundaram a construtora Andrade Gutierrez em 1948, ele gostava mesmo era de se apresentar como criador de gado Gir da fazenda Calciolândia, em Arcos MG, vizinha da Serra da Canastra. “Por que não criar uma ong?” – sugeriu sua filha Li An. Para ter uma, precisava de uma causa. Ele animou lutar pelo queijo em 2005, após visitar a cidade de São Roque de Minas, na Serra da Canastra com sua querida esposa Vera (falecida em 2011) e fazerem amizades por lá.

“Fomos visitar um produtor de queijo, Sr. Gaspar, e perguntamos a ele por que aquele queijo não se podia encontrar em São Paulo. Então eu soube que era ilegal, que o queijo só poderia chegar a São Paulo de maneira clandestina”, disse Gabriel. “Toda semana havia apreensões e destruição de queijos de produtores que tentavam enviar sua mercadoria para São Paulo”. Ali a ideia começou a ser maturada. “Isso é um fato que ninguém tem conhecimento, precisamos ajudar para não deixar perder essa tradição do queijo” ele disse assumindo a luta e criando a Associação SerTãoBras em 2008.

Gabriel e Vera na Serra da Canastra FOTO: Dave Senigo/SerTãoBras

Ele acolheu o primeiro escritório da associação em sua casa no alto do bairro Gutierrez, em Belo Horizonte, com linda vista para a Serra da Piedade. Nos dois anos que funcionou lá, ele adorava ir ao mercado central comprar queijo e convidava os produtores para o café. Foi na sua casa a festa de comemoração do decreto do Lula que unificou os sistemas de inspeção brasileiros, municipal, estadual e federal ainda em 2010, junto com lançamento do documentário O Mineiro e o Queijo.

Gabriel gostava de dizer que sua parte preferida do filme, que alertou em rede nacional de cinemas do Brasil para a injustiça do queijo mineiro ser na época clandestino, era o trecho em que o produtor de canastra Luciano, de Medeiros MG, sugere colocar na embalagem do queijo, como acontece no maço de cigarro, uma mensagem dizendo este queijo pode conter alguma Listeria, algum Estafilococos, para dar a liberdade a quem quer comer. Era um visionário.

Gabriel, sua filha Laura, o produtor Luciano, de Medeiros MG, sua esposa Helena e Débora Pereira. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profissão Queijeira

A amizade com os produtores de queijo inspirou Gabriel a escrever o artigo “Queijo só será patrimônio nacional à mesa dos brasileiros”, publicado em agosto 2008 no jornal Estado de Minas, logo após o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) declarar o modo de preparo do queijo de leite cru como patrimônio imaterial. Ele alertou: ser patrimônio imaterial não resolve as dificuldades enfrentadas pelos produtores, pois o queijo continua fora do cardápio dos brasileiros que querem consumir fora de Minas Gerais.

“Países como França, Itália, Espanha, Inglaterra, possuem dezenas de variedades de queijos, muitos deles elaborados a partir do leite cru de vaca, de cabra e de ovelha. Já países puritanos como os EUA proscrevem o leite cru e seus produtos. O Estado brasileiro não deveria imitar os EUA, e nem se colocar no lugar do consumidor, decidindo por ele. Bem informado sobre o leite cru e seus supostos riscos, o consumidor saberá decidir, sem precisar do escudo policialesco que o separa desse patrimônio nacional. Em vez desperdiçar energia em assuntos impertinentes, deveria se dedicar com afinco à saúde do rebanho brasileiro, erradicando de vez a brucelose e a tuberculose bovina que, teme, possa ser disseminada através do queijo artesanal.” disse Gabriel no texto do jornal Estado de Minas.

Em eventos do mundo agrícola mineiro, atuou como reporter de honra da SerTãoBras, entrevistando políticos, sempre com bom humor e empenhado na causa.

Uma coisa que ele adorava era levar plaquinhas para os políticos, pedindo a legalização do queijo. Marcou uma reunião para falar do queijo com o então Ministro da Agricultura, o mineiro Antônio Andrade em 2013 e levou uma plaquinha escrito “Andrade + Andrade, queijo na legalidade”. Fez questão de explicar ao Ministro: “Nosso queijo é um produto muito bom, tanto o fresco, como o meia cura ou o curado, nós ganhamos dos queijos europeus, mas você vai em um restaurante em São Paulo, tem um queijo francês de leite cru e não pode ter o nosso, sendo que nós podemos concorrer em igualdade com o francês”…

Na ExpoZebu em 2018, quando foi homenageado pela ABCZ pelo seu trabalho com o queijo, levou o cartaz “Lula Livre” FOTO: Li An/SerTãoBras

Adorava os frescos de leite cru

Gabriel gostava de lembrar do queijo que sua mãe fazia e ele comia fresco quando criança em Arcos. Mas, ao mudar para Belo Horizonte para estudar, o queijo já não chegava fresco. Gabriel contava das cestas em formatos de tubo, trançadas de junco, recheados de queijo, chegando na capital mineira, já curados, envoltos em uma camada de poeira da viagem.

Ele contava que, depois do desenvolvimento das estradas, a partir do anos oitenta, os queijos começaram a chegar mais frescos na capital. “O ciclo para consumir um queijo, da sua fabricação até a mesa do consumidor pode ser detrês a sete dias, o problema é que as regras sanitárias impedem que a gente tenha esse produto fresco na nossa mesa e, para resistir, nós consumimos os queijos clandestinos,” dizia ele. Depois de muita luta, o queijo canastra hoje pode ser vendido a partir de 21 dias, embora na prática todo mundo adore o queijo ainda mais jovem, como se encontra a venda no mercado central de Belo Horizonte.

Gabriel e sua paixão pelas vacas zebuínas. FOTO: Débora Pereira/SerTãoBras 

Ele visitou a Canastra muitas vezes e subia a serra dirigindo na estrada de terra que leva para a fazenda da Matinha, dos produtores Otinho e Eliane, a quem ele doou três vacas e um tourinho F1 em 2010, um cruzamento de Gir e holandesa que permite dar mais leite em ambientes rústicos. “Essa doação mudou completamente nosso rebanho, seu Gabriel nos ajudou muito,” disse Eliane.

Com a idade e suas limitações, Gabriel se afastou da associação a partir de 2015, mas sempre mantendo a amizade com os produtores. Hoje a SerTãoBras tem mais de 200 produtores associados em 12 estados do Brasil.

Gabriel poeta

A cineasta Petra Costa, neta de Gabriel e Vera, se inspirou nos avós para fazer o documentário Olhos de Ressaca (2009), seu primeiro trabalho, antes dos sucessos Elena e Democracia em Vertigem (que estão na Netflix). No filme ele fala: “a morte para nós que temos oitenta anos é uma coisa natural que pode vir a qualquer hora, nós temos que encarar, assim eu não tenho muito medo, mas na hora que ela vier chegando, sei que vai dar medo, quando ela estiver mais perto, pelo menos é o que dizem os poetas.” Aos 96 anos ela chegou, coisa natural, levando Gabriel para os braços de Verinha.

Fonte: estadao.com.br

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