O bioma ocupa um quarto do território nacional e é responsável pelo abastecimento de oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras
Regime de chuvas decrescente, desmatamento de matas nativas, ampliação do uso da água contribuíram para secar nada menos do que metade da vazão da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, em Minas Gerais. O manancial é o que mais secou no cerrado, bioma que, em geral, perdeu 27% da água de suas seis principais bacias, entre 1985 e 2022.
Os dados são do projeto “Cerrado – O Elo Sagrado das Águas do Brasil”, lançado nesta segunda-feira (23/06) pela organização de jornalismo investigativo Ambiental Media. Foram consideradas as principais bacias hidrográficas do cerrado: Araguaia, Paraná, Parnaíba, São Francisco, Taquari e Tocantins.
Os impactos no bioma, que ocupa um quarto do território nacional e é responsável pelo abastecimento de oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras, impressionam. Entre 1985 e 2022, a vegetação nativa do cerrado sofreu uma redução de 22%, enquanto a área destinada à produção de soja cresceu quase 20 vezes e a quantidade de chuvas encolheu 21%.
Já a evapotranspiração – volume total de umidade que poderia ser transferido do solo e da vegetação para a atmosfera devido à evaporação – aumentou 8%.

A série de reportagens “Veredas mortas”, publicada pelo Estado de Minas, denunciou esse cenário de devastação, mostrando “buritis tombados, uns vítimas do fogo, outros, da seca; solos, antes porosos e férteis em água, agora ressequidos, cimentados sob pisoteio do gado; áreas conhecidas como oásis do cerrado em agonia ou extintas”.
O título “Veredas mortas”, originalmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, soa como uma premonição diante da brutal degradação do cerrado, o segundo bioma mais devastado do Brasil.
Desmatamento preocupa
Mais de 90% das águas que correm pelo São Francisco vêm do cerrado, assim como praticamente toda a água do Pantanal. O bioma abastece quase 50% da bacia do Paraná, estratégica para a geração de energia elétrica.

Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
Cerca de 40% da água potável do país vem do cerrado, assim como mais de 50% das commodities agrícolas, destaca Yuri Salmona, geógrafo e doutor em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília (UNB): “É comum encontrar pessoas indignadas com a falta de água nas torneiras ou preocupadas com a queda de safra devido à irregularidade climática, sem perceberem que esses problemas estão diretamente ligados ao desmatamento do cerrado”. Ele acrescenta que 56% da água já perdida foi devido ao desmatamento e mudança do solo e 44% pelas mudanças climáticas.
Os impactos no Rio São Francisco são particularmente preocupantes. A bacia registrou uma redução de 50% na vazão mínima de segurança (de 823 m³/s para 414 m³/s), o maior declínio entre as bacias analisadas. Paralelamente, a área de produção de soja na bacia disparou 7.082%, a vegetação nativa diminuiu 20%, a pluviosidade caiu 28% e a evapotranspiração potencial aumentou 11%.
Essas pressões incluem obras de transposição do rio e construção de hidrelétricas, cujo controle da vazão para gerar energia leva, por exemplo, ao avanço da água do mar na foz.
Tributários importantes como o Rio das Velhas, o Rio Urucuia e o Córrego do Batistério, que compõem o universo do sertão rosiano, também sofrem gravemente. O Rio das Velhas é o mais poluído da bacia, com 50,8% das amostras coletadas entre 2019 e 2024 excedendo os limites de tolerância, enquanto o próprio São Francisco apresentou violações em 38,1% das amostras.
A poluição, com altas concentrações de fósforo e manganês, tem origem em agrotóxicos, esgoto, mineração e fertilizantes. O desmatamento nas margens desses rios contribui para o assoreamento, reduzindo a profundidade e o volume de água. O Córrego do Batistério, imortalizado por Guimarães Rosa, “morreu. Deseco”, sem uma gota de água fluindo para o Rio das Velhas.
Cenário contribui para desastres climáticos
Para o cerrado como um todo, a perda de vegetação nativa diminui a infiltração de água no solo e o reabastecimento dos aquíferos, que são cruciais para a vazão dos rios em períodos de seca. O desmatamento também ampliou uma “bolha de ar quente no Planalto Central, impedindo a entrada adequada dos rios voadores da Amazônia, um fator que contribuiu para desastres climáticos, como as chuvas concentradas no Rio Grande do Sul em 2024”, afirma o estudo.
As monoculturas, como a soja, que não possuem os mesmos mecanismos adaptativos das plantas nativas do cerrado, promovem uma “troca de água com a atmosfera ‘inconsequente'”, desequilibrando o sistema natural e levando à escassez hídrica.
Outras bacias importantes do cerrado, como Tocantins, Parnaíba, Paraná, Taquari e Araguaia, também enfrentam reduções na vazão mínima de segurança, quedas na pluviosidade e aumentos dramáticos na área de produção de soja e na evapotranspiração potencial, com a bacia do Parnaíba registrando o maior aumento na área de soja (+22.993.800%) e a maior queda na pluviosidade (-38%).

Estudo recomenda medidas urgentes
O projeto obteve dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) para vazão, pluviosidade e evapotranspiração potencial (comparando períodos de 1970-1979 e 2012-2021) e do MapBiomas (Coleção 8) para uso e ocupação do solo (1985-2022).
A metodologia incluiu a definição de pontos estratégicos pelo coordenador científico Yuri Salmona e a análise temporal dos dados para identificar tendências de degradação hídrica.
A urgência de colocar o cerrado no centro do debate é um dos principais alertas. A degradação compromete o abastecimento de água para consumo humano, agricultura e geração de energia. A falta de conhecimento da população sobre a ligação entre a degradação do cerrado e a escassez de água impede a devida proteção do bioma.
Diante deste cenário, o relatório e as reportagens recomendam medidas urgentes. É fundamental definir as Áreas Prioritárias para Conservação de Água do Cerrado.
Outras sugestões incluem uma legislação de uso do solo equivalente à implementada na Amazônia; o Cadastro Ambiental Rural (CAR), garantindo reservas legais ampliadas em bacias ameaçadas; maior rigor nas autorizações para desmatamento legal e implementação da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo.
Enquanto isso, faz-se necessário o fomento das cadeias produtivas locais com desmatamento zero e lógica econômica mais sustentável; incentivos para recuperação de nascentes e matas ciliares; regulamentação mais rígida para a expansão da soja e outras monoculturas em áreas de recarga hídrica.
Uma das formas seria o estabelecimento de novas unidades de conservação nas bacias mais impactadas; monitoramento contínuo e transparente dos recursos hídricos e estímulo à adoção de sistemas agroflorestais.
A preservação do cerrado e suas águas é essencial não apenas para ambientalistas, mas para economistas, gestores e tomadores de decisão, pois, sem ele, a produtividade agrícola cai, os alimentos encarecem, o racionamento de água se torna recorrente e os conflitos rurais se intensificam.
Fonte: Estado de Minas